quinta-feira, 31 de maio de 2012

Uma crise sistémica.


A ambição do poder, galvanizada pela fé na doutrina neoliberal, fê-los montar a maior fraude política desde que Portugal recuperou a democracia.

A palavra “austeridade” tem pelo menos dois sentidos no debate público sobre a crise que vivemos. O primeiro diz respeito ao conjunto das medidas de política orçamental que visam reduzir a despesa pública para alcançar as metas do défice impostas pela troika. O segundo, subjacente a uma retórica de compromisso, remete para a necessidade de uma gestão parcimoniosa dos recursos públicos, a eliminação de desperdícios na despesa e a extinção de serviços sem reconhecida utilidade social. A ambiguidade semântica da palavra “austeridade” pode ser conveniente para os que se preocupam com gerir a sua carteira de relações sociais, mas é certamente nociva para a clareza do debate político e a formação da opinião dos cidadãos.

Em campanha eleitoral, o PSD explorou habilmente o segundo sentido da palavra “austeridade”. Tratar-se-ia de eliminar as famosas gorduras do Estado, com destaque para institutos públicos e fundações. Ou seja, explorou a iliteracia económica da esmagadora maioria dos cidadãos para insinuar um sentido para a palavra “austeridade” que o senso comum só poderia subscrever. Os economistas daquele famoso gabinete de estudos do PSD bem sabiam que não se tratava apenas de boa administração pública. Estavam bem conscientes de que a rápida redução do défice público exigiria um corte nos salários, a combinar com um aumento de impostos e taxas de todos os tipos. Sabiam tudo isto, e queriam ir mais longe. A ambição do poder, galvanizada pela fé na doutrina neoliberal, fê-los montar a maior fraude política desde que Portugal recuperou a democracia. A sua austeridade era outra, a do desemprego dramático para fazer descer os salários em nome da competitividade, uma austeridade que não podia ser sujeita ao voto dos cidadãos. Se a desconfiança relativamente aos partidos do rotativismo no poder já era grande, só pode ter aumentado desde as últimas eleições, até porque a austeridade se revela inútil e os seus efeitos não atingem os ricos.

Bem sabemos que o obscuro negócio das parcerias público-privadas, a criminalidade financeira em alta escala com livre circulação pelo sistema bancário, ou a irresponsabilidade orçamental do governo da Madeira, onde também se localiza um paraíso fiscal, são apenas exemplos do estado de desgoverno em que o país vive há muito tempo. Porém, as reformas estruturais que deveriam pôr termo a esse estado de coisas não fazem parte da lista do Memorando nem dos programas do rotativismo centrista por duas razões bem evidentes: a liberdade dos movimentos de capitais especulativos e a suave regulação do negócio financeiro constituem um dos pilares da UEM; uma parte importante das elites político-partidárias, em Portugal e na UE, está vinculada ao mundo da finança por interesses e ideologia. Por isso percebe-se que os bancos europeus não tenham sido obrigados a reconhecer as perdas decorrentes do colapso financeiro de 2008 e, nas periferias da zona euro, os bancos tenham sido os intermediários do BCE no financiamento dos países onde a bolha do imobiliário rebentou e/ou o sector privado acumulou um défice externo sistemático. Os bancos puderam assim arrecadar ganhos preciosos que, em contrapartida, aumentaram muito a sua exposição a uma dívida pública impossível de cumprir.

Assim sendo, esta crise enlaça o centro credor e a periferia devedora; integra num mesmo processo bancos e estados; responsabiliza elites políticas nacionais e a tecnocracia pelo desastre neoliberal e pela degradação das democracias. Mais, se alguém pensa que esta crise deixará intacto o quadro político-partidário, em Portugal e noutros países da UE, de facto ainda não percebeu o que está em causa.

Jorge Bateira - Economista, co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas

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