quinta-feira, 13 de junho de 2013

Está a acontecer. Já se apercebeu?


Está a acontecer. Aquilo que nem nos passava pela cabeça que pudesse acontecer está mesmo a acontecer. Está a acontecer cada vez com mais regularidade as farmácias não terem os medicamentos de que precisamos. Está a acontecer que nos hospitais há racionamento) de fármacos e uma utilização cada vez mais limitada dos equipamentos. Está a acontecer que muitos produtos que comprávamos nos supermercados desapareceram e já não se encontram em nenhuma prateleira. Está a acontecer que a reparação de um carro, que necessita de um farol ou de uma peça, tem agora de esperar uma ou duas semanas porque o material tem de ser importado do exterior. Está a acontecer que as estradas e as ruas abrem buracos com regularidade, que ou ficam assim durante longos meses ou são reparados de forma atamancada, voltando rapidamente a reabrir. Está a acontecer que a iluminação pública é mais reduzida, que mais e mais lojas dos centros comerciais são entaipadas e desaparecem misteriosamente. Está a acontecer que nas livrarias há menos títulos novos e que as lojas de música se volatilizaram completamente. Está a acontecer que nos bares e restaurantes há agora vagas com fartura, que os cinemas funcionam a meio gás, que os teatros vivem no terror da falta de público. Está tudo isto a acontecer e nós, como o sapo colocado em água fria que vai aquecendo lentamente até ferver, não vemos o perigo, vamos aceitando resignados este lento mas inexorável definhar da nossa vida colectiva e do Estado social, com uma infinita tristeza e uma funda turbação.
Está a acontecer e não poderia ser de outro modo. Está a acontecer porque esta política cega de austeridade está a liquidar a classe média, conduzindo-a a uma crescente pauperização, de onde não regressará durante décadas. Está a acontecer porque, nos últimos quase 40 anos, foi esta classe média que alimentou cinemas, teatros, espectáculos, restaurantes, comércio, serviços de saúde, tudo o que verdadeiramente mudou no país e aquilo que verdadeiramente traduz os hábitos de consumo numa sociedade moderna. Foi na classe média — de professores, médicos, funcionários públicos, economistas, pequenos e médios empresários, jornalistas, artistas, músicos, dançarinos, advogados, polícias, etc. —, que a austeridade cravou o seu mais afiado e longo punhal. E com a morte da classe média morre também a economia e o próprio país.
E morre porque era esta classe média que mais consumia — e que mais estimulava — os produtos culturais nacionais, da literatura à dança, dos jornais às revistas, da música a outro tipo de espectáculos e de manifestações culturais. É por isso que a cultura está a morrer neste país, juntamente com a economia. E se a economia pode ainda recuperar lentamente, já a cultura que desaparece não volta mais. Um país sem economia é um sítio. Um país sem cultura não existe.
Durante a II Guerra Mundial, quando o esforço militar consumia todos os recursos das ilhas britânicas, foi sugerido ao primeiro-ministro Winston Churchill que cortasse nas verbas da cultura. O homem que conduziu a Inglaterra à vitória sobre a Alemanha recusou perentoriamente. “Se cortamos na cultura, estamos a fazer esta guerra para qué?” Mutatis mutandis, a mesma pergunta poderíamos fazer hoje: se retiramos todas as verbas para a cultura, estamos a fazer este ajustamento em nome de quê? Mas esta, claro, é uma questão que nunca se colocará às brilhantes cabeças que nos governam.


terça-feira, 4 de junho de 2013

Aos meus amigos fora da Turquia.



Estou a escrever para vos fazer saber o que se passou em Istambul nestes últimos 5 dias. Estou a escrever pessoalmente porque muitos dos meios de comunicação foram bloqueados pelo governo e o "passa a palavra" e a internet são as únicas formas que restam para nos explicarmos e gritar por apoio e ajuda.

Na ultima semana de Maio de 2013 um grupo de pessoas cuja maioria não pertencia a nenhuma organização ou ideologia especifica, juntaram-se no Parque Gezi em Istambul. Entre eles estavam amigos meus e estudantes de yoga. A razão era simples : Protestar e impedir a demolição do parque para a construção de mais um centro comercial no centro da cidade. Existem inúmeros centros comerciais em Istambul, e pelo menos um em cada bairro. A destruição destas árvores deveria começar quinta feira de manhã. As pessoas reuniram-se com cobertores livros e crianças. Montaram tendas e pernoitaram no meio das árvores. De manhã quando os bulldozers começaram a arrancar árvores com centenas de anos do chão, eles enfrentaram-nos e impediram a operação.

Não fizeram mais nada que colocarem-se em frente às maquinas.

Não existiu um jornal ou uma televisão que tivesse noticiado o sucedido.Tiveram um black-out informativo completo.

Mas a policia chegou com canhões de agua e gás pimenta. E expulsaram as pessoas para fora do parque.

Ao serão do dia 31 de Maio o numero de manifestantes multiplicou-se. O numero de policias à volta do parque também. Entretanto o governo local de Istambul fechou todos os caminhos à Praça Taskim onde o parque está situado. O metro foi fechado, a circulação de comboios foi cancelada, e as estradas bloqueadas.

Contudo mais e mais pessoas conseguiam chegar ao centro da cidade a pé.

Vieram de todos os locais de Istambul. Diferentes passados, diferentes ideologias, diferentes religiões. Juntaram-se para impedir a destruição de algo maior que o parque:

O direito a sermos cidadãos honrados neste país.

Juntaram-se e permaneceram sentados no parque. A policia de choque, durante um ataque a meio da noite, pegou fogo às tendas, e atacou o manifestantes com gás lacrimogéneo e jactos de agua. Dois jovens atropelados por tanques morreram. Outra rapariga, uma amiga minha, foi atingida na cabeça com uma lata de gás que foi disparada. A policia disparava directamente contra a multidão. Após três horas de operação continua nos cuidados intensivos numa situação muito crítica. Enquanto escrevo isto, ainda não sei se sobreviverá. Este blog è dedicado a ela.

Estas pessoas são amigos meus, estudantes meus, familiares meus. Não têm qualquer agenda secreta como o Estado diz. A agenda do Estado, è a que se vê. È muito clara. O país inteiro está a ser vendido a corporações pelo governo, para a construção de centros comerciais, condomínios de luxo, auto-estradas, barragens e centrais nucleares. O nosso governo está a procurar (e a criar quando necessário), qualquer desculpa para atacar a Síria contra a vontade do povo turco.

Como se isso não bastasse, ultimamente o controlo do governo sobre a vida pessoal dos cidadão está a ser intolerável. O Estado, segundo a sua agenda conservadora aprovou legislação em relação ao aborto, nascimento por cesariana, venda e consumo de álcool, e inclusive sobre a cor de bâton  usado por hospedeiras de bordo.

As pessoas que marcham no centro de Istambul exigem uma vida livre, justiça, protecção e respeito do Estado. Exigem serem ouvidos nos processos de decisão acerca da cidade onde vivem.

O que recebemos em troca foi força bruta e gás disparado contra nós. Três pessoas perderam a vista.

Mas continuam a marchar. Centenas e milhares de toda a espécie juntaram-se a eles. Dois mil atravessando a ponte Bosporus a pé para se juntarem às pessoas em Taskim. Foram recebidos com mais canhões de agua, mais gás pimenta, mais hostilidade. Quatro morreram, milhares foram feridos.

Nenhum telejornal ou canal de televisão noticiou estes acontecimentos. Em vez disso, transmitiam noticias sobre a Miss Turquia ou o "gato mais perigoso do mundo".

A policia continuou a perseguir e a gasear as pessoas a um ponto que gatos e cães vadios chegaram a morrer envenenados.

Escolas, Hospitais e mesmo hoteis de 5 estrelas abriram as portas para acolher feridos. Alguns policias recusaram participar nas agressões e demitiram-se. À volta da praça a policia colocou antenas para bloquear os sinais 3G. Residentes e donos de lojas na zona providenciaram internet e wireless gratuitamente para as ruas. Restaurantes ofereciam e distribuíam comida e água.

Em Izmir e Ancara reuniam-se pessoas nas ruas em apoio às de Istambul. A manifestações começavam a espalhar-se a outras cidades, onde cidadãos iam sendo tratados com brutalidade e hostilidade pela policia. Centenas de milhares juntaram-se.

Os media, continuavam a transmitir a Miss Turquia e o "gato mais perigoso do mundo".

***

Estou a escrever isto para que saibam o que se passa em Istambul. A comunicação social não diz nada disto. Pelo menos no meu país. Por favor postem todos os artigos que encontrarem e virem na internet e espalhem pelo mundo.

Eu não pertenço a qualquer partido politico. Eu não acredito na politica. Não defendo qualquer ideologia nem estou ao lado de qualquer regime. Como muitos na Turquia, estou cansada e frustrada da polarização entre o secular Kemalismo e o Islamismo. Não pertenço a qualquer deles. Eu acredito no afastamento desta polarização em caminho de encontrarmos novas formas de relacionamento. Eu sei que muitas das pessoas que se manifestam nas ruas de Istambul partilham esta ideia e acho que não somos os únicos. Apenas queremos viver as nossas vidas com dignidade.

Enquanto postava artigos que explicavam o que se estava a passar em Istambul no meu Facebook, alguém me perguntou:

"Que esperas conseguir por queixar-te acerca do teu país a estrangeiros ?"

Este blog è a minha resposta.

Por "queixar-me" a estrangeiros acerca do meu país espero o seguinte:

Liberdade de expressão e de opinião,

Respeito pelos direitos humanos,

Controlo sobre as decisões que dizem respeito ao meu corpo,

O direito de me aglomerar a outro em qualquer parte de cidade sem me chamarem terrorista.

Mas principalmente ao espalhar tudo isto, a vocês, meus amigos, que vivem noutras partes do mundo, espero conseguir a vossa consciência, apoio e ajuda.

Por favor espalhem este blog.

Obrigada "

O original pode ser encontrado aqui:
http://defnesumanblogs.com/