quinta-feira, 19 de julho de 2012

D. Januário e os outros.


Que, como há 50 anos, um bispo tenha de novo erguido a voz, fazendo "política" em vez de se remeter à sacristia, eis o escândalo que agita hoje esta espécie de tempos democráticos e de liberdade de expressão em que vivemos.
Também em 1958 a Igreja institucional se demarcou da carta do bispo do Porto a Salazar. Revelaria mais tarde D. António que até "da Cúria vaticana alguém [lhe] disse: "Bem sabemos que isso é doutrina da Igreja; mas se, de um lado e de outro sabemos isso, para que estar a pregá-lo?".
Em muitos aspectos, essa carta é hoje de novo singularmente actual: voltaram à rua o "mendigo, o pé-descalço, o maltrapilho, o farrapo (...), os subalimentados"; e o "financismo 'à outrance'", o "economismo despótico", o "benefício dos grandes contra os pequenos", o "ciclo da miséria" são outra vez "o centro da Nação".
Por isso, mais actuais que nunca são também os versos de Sophia: "Porque os outros se mascaram mas tu não/ Porque os outros usam a virtude/ Para comprar o que não tem perdão./ Porque os outros têm medo mas tu não./ Porque os outros são os túmulos caiados/ Onde germina calada a podridão./ Porque os outros se calam mas tu não./ Porque os outros se compram e se vendem/ E os seus gestos dão sempre dividendo./ Porque os outros são hábeis mas tu não./ Porque os outros vão à sombra dos abrigos/ E tu vais de mãos dadas com os perigos./ Porque os outros calculam mas tu não".


A pátria empobrecida.


E de repente, este vazio cheio de vozes inúteis. "Apetece cantar e ninguém canta / Apetece gritar e ninguém grita..." Escreveu Miguel Torga. O desespero era semelhante ao de agora porque a mão do medo entravava a condição de todos. Os acasos da fortuna, os equívocos da época e as ambiguidades de carácter de muitos homens embrulharam-nos neste sudário. Repete-se a história dos lutos portugueses. Os espanhóis Unamuno e Ortega falaram do nosso infortúnio. O primeiro com terna simpatia; o segundo com displicente desprezo. Unamuno tentou compreender-nos. Ortega observou-nos com azeda desconsideração.
Olhamos em volta. Talvez mereçamos ambas as perspectivas. A qualidade da existência colectiva, acaso possa medir-se nessa dualidade. Elegemos quem nos faz mal por excesso de incoerência e vocação para o infausto. A História está repleta desse mal-entendido vital. Mas poucas vezes, como agora, estivemos no interior do círculo concêntrico da angústia sem saída.
O projecto de empobrecimento de Pedro Passos Coelho enfraqueceu, sobretudo, a nossa alma. Mas a diminuição projectada para os outros diminuiu quem a executou. Ou, melhor: quem a executou está desprovido da grandeza exigida aos que dirigem e decidem. Observemos os rostos desta gente: reflectem a génese dos que não possuem força natural, e mais não são do que expressões servis e inconsistentes. Gil Vicente narrou-os e ao espírito que os anima, antes de qualquer outro. Camilo e Eça remataram o retrato. São filhos, netos e bisnetos dos que se julgam sacramentados pelo direito divino, e não têm de dar satisfações pelos seus actos. Quando alguém se ergue, através do trabalho, do talento e da vontade, para tentar modificar as coisas, logo ressuscitam os velhos e malditos poderes. "O país é pequeno, e não maior a gente que o habita." A frase é atribuída a Herculano, que desistiu com um parágrafo terrível: "Isto dá vontade de morrer!"
As balbúrdias morais que por aí se cometem e circulam têm servido de pretexto ao anedotário. Mas o assunto não dá para rir. Ele revela o estado de irresponsabilidade doentia a que Portugal chegou. E não creio que consigamos sanar a endemia com facilidade. O mal propagou-se, e os que ficam ao lado desta miséria, sem querer salpicar-se, por inércia ou receosa precaução, demitem-se do civismo que constrói a cidadania. Sei muito bem que estes princípios e padrões de comportamento são tidos como anacronismos. E talvez nem todos sejamos virgens impolutas. Porém, não esqueçamos de que a enxurrada arrasta tudo e todos.
Ao deixar de ouvir as nossas sociedades civis, o Governo sobreviverá até que o PS encontre uma alternativa (António José Seguro, averiguadamente, não o é) e redescubra a sua natureza ideológica. E cuja matriz toda a gente, na realidade, ignora. Entretanto, a pátria está de mão estendida.

BAPTISTA-BASTOS – DN

quarta-feira, 18 de julho de 2012

A fronteira da escravatura.


Os valores da sociedade portuguesa estão a mudar. Para melhor? O futuro é sempre melhor que o passado. Mas há fases no presente em que os valores parecem ter regressado a passados de trevas. Hoje já confundimos direitos que conquistámos quando abolimos a escravatura com o dever de praticar a caridade.
Os valores da sociedade portuguesa estão a mudar. Para melhor? O futuro é sempre melhor que o passado. Mas há fases no presente em que os valores parecem ter regressado a passados de trevas. Hoje já confundimos direitos que conquistámos quando abolimos a escravatura com o dever de praticar a caridade.
Na semana passada chegou ao espaço mediático a notícia sobre as condições em que estavam a viver cerca de 50 pessoas que trabalhavam para a Opway e a Somague na construção do centro de dados da PT na Covilhã. Começou no "Jornal do Fundão" e chegou a uma reportagem na SIC Notícias. Aquilo, não se queria acreditar, estava a passar-se em Portugal. Abandonados num armazém sem água, nem luz, nem condições sanitárias. Trabalhadores, boa parte imigrantes, a trabalharem para um empresa subcontratada por duas construtoras de referência que estavam ao serviço de uma das mais importantes companhias portuguesas cotadas em bolsa. Todas elas, Opway, Somague e PT têm vastos relatórios sobre sustentatibilidade e discursos sobre a responsabilidade social. Nenhuma se considerou realmente responsável pelas condições que estavam a dar a quem trabalhava para elas, ainda que por via de um subempreiteiro.
Há alguns anos que nos vamos habituando à falta de ética nas empresas. Um défice de ética que as empresas na Europa como nos Estados Unidos foram corrigindo com relatórios em cima de relatórios sobre sustentabilidade e responsabilidade social que são basicamente "papas e bolos para enganar tolos" ou asas de anjos com sombra de demónio, como uma vez tão bem retratou a revista "The Economist". As mais recentes revelações sobre o comportamento do Barclays e, suspeita-se, de outros bancos, na fixação da Libor, taxas de juro determinantes para o custo do crédito de empresas e famílias, revelou mais uma vez que a ética corporativa anda pelas ruas da amargura, para não se dizer que a indignidade tomou conta do poder nas empresas.
Que as empresas, da banca às telecomunicações, da construção à industria de vestuário, vivem tempos em que a ganância dita a queda de todos os valores já todos estamos mais ou menos habituados. Maus hábitos, é verdade, mas já não nos surpreendem.
O que não sabíamos é que cada um de nós, individualmente, também já estava contagiado. Que cada um de nós também já tinha deixado cair valores ganhos desde o tempo em que caiu a escravatura e, mais tarde, os sindicatos estabeleceram fronteiras de humanização do trabalho.
A história dos trabalhadores da Covilhã, a viverem num armazém, foi chocante por aquilo que se é capaz de fazer para ganhar uma margem no negócio. Mas foi mais chocante ainda pela imagem que deu da sociedade indiferente em que nos transformámos.
A primeira reacção às condições degradantes de vida daquelas pessoas foi contactar o Ministério da Solidariedade Social como se de um caso de caridade se tratasse. Há uns anos, não muitos, o sítio onde todos nós buscaríamos uma resposta seria no Ministério do Trabalho, mais concretamente na Inspecção Geral do Trabalho. E a Opway, a Somague e a própria PT teriam muito que explicar, não se desculpando com subempreitadas ou com empregos que vão criar.
Houve também um tempo, na escravatura e nos primeiros tempos da revolução industrial, em que o medo fez com que tudo se aguentasse. Até ao dia em que se perdeu o medo. O que é mais aterrador na actual crise é a impossibilidade de qualquer sociedade europeia aguentar a degradação de valores que as lideranças querem impor para ultrapassar os actuais problemas.

Helena Garrido – Jornal de Negócios Online

quinta-feira, 12 de julho de 2012

A porca da política.


Os negócios dominam a vida política. A confusão entre interesses privados e públicos é regra. O maior antro deste tráfico de influências é a Assembleia da República. Desde a comissão parlamentar de acompanhamento ao programa de assistência financeira, onde os interesses da EDP estão representados através dos deputados Pedro Pinto e Adolfo Mesquita Nunes, até à comissão de agricultura, onde o parlamentar Manuel Isaac fiscaliza a actividade do Ministério que tutela o sector da empresa a que está ligado. São dezenas os deputados que, de forma aparente, potencial ou real, estão em situação de conflito de interesses.
Mas a promiscuidade não se esgota aqui. Contamina até o Banco de Portugal, em cujos órgãos sociais têm assento representantes da banca privada como António de Sousa, que assim se pronunciam e condicionam a actividade do Banco Central, que supervisiona as entidades para que trabalham.
Só neste caldo de cultura poderiam nascer negócios ruinosos como as parcerias público-privadas rodoviárias, com lucros garantidos aos privados e riscos a correr por conta do estado. O que talvez se perceba se atentarmos que os principais administradores das concessionárias das PPP são os ex-ministros das obras públicas dos governos que as conceberam e implementaram. Como Ferreira do Amaral gizou o negócio da Ponte Vasco da Gama e preside hoje à entidade concessionária, a Lusoponte; ou Jorge Coelho e Valente de Oliveira que são administradores da Mota Engil, a empresa dominante no sector das parcerias.
O poder dos negócios sobre o interesse público é tal que um grupo privado, o Mello, consegue dispor de crédito de quinhentos milhões dum banco público, a Caixa, para uma operação de aquisição de uma empresa privada, a Brisa; para que mais tarde esta se possa eventualmente candidatar à privatização de uma empresa pública, a ANA. Aterrador! Os administradores da Caixa, nomeados politicamente, já não são só promíscuos, parecem mercenários.
Os interesses privados capturaram os agentes políticos e alimentam-se da enorme manjedoura que é o orçamento de estado. Como diria Bordalo Pinheiro, "a política é uma porca em que todos querem mamar". E neste regime, os mamões estão insaciáveis.

Paulo Morais, professor universitário-CM

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Lotaria de Natal paga nova unidade da Santa Casa.


Santa Casa inaugurou uma nova  unidade de cuidados continuados em Cascais.
                    Instituição recebe o nome de Maria José Nogueira Pinto

A unidade de cuidados continuados e paliativos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) em Cascais, vai apoiar 75 pessoas com dependências físicas e doenças de longa duração, segundo uma administradora do organismo.
"É um projeto que é ambicionado desde 2004 para dar acolhimento a grandes dependentes físicos e doentes de grande duração. Tem quatro pisos, 70 quartos e 75 camas", disse à Agência Lusa a administradora da SCML com o pelouro da Saúde, Helena Lopes da Costa.
Ao nível dos cuidados paliativos, a população alvo abrange ainda, segundo a administradora, doentes com "prognóstico de vida limitada", com "sofrimento físico e psíquico muito grandes e problemas e necessidades complexas".
Com a inauguração, e depois de ultimar os últimos regulamentos com a Entidade Reguladora da Saúde, Helena Lopes da Costa acredita que a unidade vai ter "casa cheia", dada a "necessidade de camas" nesta área de prestação de cuidados de saúde.
“Há muita falta de camas para cuidados continuados e paliativos em Lisboa, há grandes listas de espera. Em Portugal, com o crescimento da idade média de vida mas com algumas doenças, surgem problemas e muita gente não tem suporte familiar para ajudar e têm de recorrer a este tipo de apoios", disse Helena Lopes da Costa.
Para a administradora, esta unidade é de "extrema importância", uma vez que poderá prestar serviços de também a pessoas que vivem isoladas e "com elevados graus de dependência" na capital e que, assim, poderão receber um acompanhamento mais próximo.
Com um investimento de cerca de nove milhões de euros, a construção da unidade foi concluída oito anos depois de ter sido pensada inicialmente, em 2004, por Maria José Nogueira Pinto, quando era provedora da SCML. Por isso, a unidade recebe o nome da ex-provedora, falecida há um ano com cancro no pâncreas.
Para o conhecimento geral, no  Natal de 2004, ano em que não foi vendido o número sorteado na Lotaria de Natal, a então provedora da Santa Casa decidiu que o valor do prémio seria para investir numa unidade de cuidados continuados e paliativos.
A unidade vai trabalhar em sinergia com as duas outras unidades de saúde da SCML - Hospital Ortopédico de Sant'Ana e Centro de Medicina de Reabilitação do Alcoitão.

domingo, 8 de julho de 2012

Trabalho, salário, dignidade!


Revoltemo-nos e mobilizemo-nos contra a desvalorização do trabalho, contra a exploração oportunista, contra a ausência de dignidade com que tratam os trabalhadores. É ignóbil pagar a um enfermeiro ou enfermeira menos de 4 euros por hora, a jovens engenheiros, arquitetos, designers, economistas, etc., entre 400 e 600 euros por mês, impondo-lhes até a utilização de viaturas próprias para fazerem o trabalho.
É vileza e malvadez fazer-se toda uma campanha de motivação dos jovens para que façam formações com qualidade, e depois, por exemplo, os grandes escritórios de advogados, os grandes meios de Comunicação Social, múltiplas empresas das mais diversas áreas, explorarem estagiários e profissionais em início de carreira, colocando-os a fazer trabalho normal sem retribuição ou a troco de míseros subsídios.
É revoltante observarmos multidões de trabalhadores que em call centers, ou noutras atividades, são remunerados por valores que oscilam entre os 2 e os 3 euros por hora.
Não se admite que o salário mínimo nacional (SMN) continue tão baixo e que existam dezenas e dezenas de milhares de trabalhadores a quem nem sequer o SMN é pago, enquanto alguns senhores se abotoam com centenas de milhares ou milhões de euros por ano.
É ainda revoltante ver governantes, serviços públicos como o IEFP, gestores ou patrões instalados, académicos ao serviço do sistema dominante a responsabilizarem individualmente os jovens pelo seu futuro, vendendo-lhes a trapaça do "empreendedorismo" neoliberal como solução milagrosa que tudo vai resolver.
A redução violenta dos salários, o desemprego em massa e a generalização das precariedades no trabalho constituem-se hoje, inequivocamente, como três opções estruturantes das políticas que vêm sendo impostas aos portugueses. Não tenhamos dúvidas: elas fazem parte dos grandes objetivos a atingir pelo "governo interno" (de Passos Coelho) e pelo "governo externo" (da troika e C.ª), que as determinam como "necessidade".
A crise surge a justificar o desemprego, o corte nos salários, as instabilidades e inseguranças no trabalho, mas estas duras realidades foram e são "matéria-prima" da gestação e do aprofundamento da própria crise. Serviram o cavalgar da ofensiva neoliberal, tornando a sociedade cada vez mais carregada de desigualdades na utilização e distribuição da riqueza; agora, aceleradamente, estão a alimentar um perigoso retrocesso social e civilizacional.
Este retrocesso tem como alvo fundamental o trabalho, o seu valor e os direitos laborais e sociais a ele associados.
O trabalho é atividade produtiva indispensável para a criação de "valores" de uso e de troca. É imprescindível que a economia seja sustentada pelo trabalho e não por processos de financeirização e especulação.
O trabalho, valorizado e impregnado de comportamentos responsáveis, é espaço primordial de socialização. Em muitas situações tem até mais importância que o espaço família.
O trabalho digno, inserido num processo de efetivo desenvolvimento e sustentando-o, convoca aprendizagens e qualificações e desenvolve-as, sendo motor de avanços tecnológicos e organizacionais, de modernização de empresas e serviços.
A valorização do tempo e das condições de trabalho é a única via segura para valorizar o tempo e as atividades do não trabalho. Um homem ou mulher que trabalha deve ter condições para efetivar o seu trabalho com motivação, dignidade e responsabilização, e a sua condição de trabalhador não pode tolher a condição de cidadão e do ser humano pleno. Se não houver salários dignos e tempo para a família, para a formação, para o lazer, para a participação cívica e política, jamais se sustentará um conjunto de atividades importantes das sociedades modernas desenvolvidas e a democracia será estrangulada.
O salário não é um mero custo. Ele dinamiza a economia. Entretanto precisamos de substituir as loucuras do enfoque à competitividade e à produtividade por objetivos de desenvolvimento humano, mas isso não será feito com ataque aos valores do trabalho.
Pela via da desvalorização do trabalho não se encontrará o desenvolvimento, o progresso, a justiça social a que o povo português tem direito.