segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Como vai ficar registada na História a revelação de documentos ultrassecretos da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América (EUA) feita por Edward Snowden? A espionagem, nas suas mais diversas expressões, é uma velha atividade em regra bastante suja. Não é fácil detetar nas práticas individuais e coletivas do processo valores éticos, morais ou de relevância humanista. Mas, ao longo da História observam-se atos de espionagem que estiveram na origem de grandes transformações da sociedade e/ou que fixaram sentidos na mudança de poderes. Snowden não nos trouxe propriamente uma descoberta, mas despertou atenções que podem vir a ser importantes.

Primeiro, a aldeia global está bem pior do que a aldeia real. Na aldeia global, os especialistas da coisa conseguem ter um ouvido e um olho dentro de cada casa ou no telemóvel de cada cidadão, enquanto na aldeia real as fontes se situavam em coscuvilhices e na ação de "bufos" que municiavam os especialistas. Na mudança de era que estamos a viver, a Internet é uma tecnologia que foi apropriada por um poder que brinca hoje, perigosamente, com a vida dos seres humanos, sem sujeição a qualquer escrutínio popular e democrático.

Segundo, os EUA - que ainda se sentem como senhores todo-poderosos da aldeia global - usufruindo da concentração dos comandos da Internet, optaram por utilizar os avanços tecnológicos pela via mais ignóbil da "inovação" social, o assassinato da liberdade e da democracia.

Terceiro, fica provado até à exaustão que o liberalismo dominante só não controla os movimentos de capitais e especulativos porque não quer. Prefere usar as tecnologias para facilitar o roubo e a exploração sem limites e para aprisionar as pessoas.

Quarto, como sabemos, a chamada crise financeira mundial que eclodiu em 2007/2008 teve a sua origem nos EUA e não teria sido exportada, em tão forte dose e tão eficazmente, para a Europa como foi, sem os colossais meios informáticos que aquele país manipula.

Como denunciou em discurso corajoso Dilma Rousseff, presidenta do Brasil, no passado dia 24 de setembro, na abertura da 68.ª Assembleia-geral da ONU (com Barack Obama presente), os EUA andam, de forma inqualificável, a espionar governos de países catalogados de irmãos e amigos, a apropriar-se de informações empresariais de alto valor económico e estratégico, a manipular, sem escrúpulos, dados pessoais de milhões e milhões de seres humanos.

No Reino Unido, o irmão mais próximo, os serviços secretos britânicos colaboram na operação contra o seu povo. Na França, em 30 dias, espiolharam, em absoluta ilegalidade, mais de 70 milhões de dados telefónicos de franceses. Na Alemanha, a prática é a mesma e parece que nem a sr.ª Merkel escapa. Agora surgem notícias sobre a Espanha e, por certo, a situação será idêntica na generalidade dos países europeus. Nós, portugueses, dificilmente saberemos o que de facto se passa connosco, pois somos governados por subservientes e traidores políticos, que optarão sempre por credibilizar o poder externo, em desfavor dos direitos e interesses do povo e do país.

Por que é que a "Europa" é colocada nesta situação vergonhosa? Será que podemos e conseguiremos sair deste atoleiro? Os países da União Europeia, no seu conjunto e cada um, estão dependentes e submetidos. Estão absolutamente ensanduichados entre os EUA, potência que está a perder poder económico e político, e a força dos países emergentes.

A "Europa" integrou-se na dinâmica da globalização neoliberal, nunca se quis afirmar como polo alternativo - objetivo que entretanto se tornou desadequado - e hoje é arrastada pelo grande irmão no seu estrebuchar. Foi por isso que a cabeça do neoliberalismo se instalou no espaço europeu nos últimos anos. Para atacar o modelo social europeu e um significativo quadro de direitos sociais e políticos vale tudo.


Só uma perspetiva nova de respeito pelos povos, por valores de universalismo e solidariedade assentes numa estratégia séria de cooperação, desde logo entre os países europeus, mas também com países e povos de todas as latitudes, poderá salvar-nos. Iremos a tempo?

Carvalho da Silva - JN

" Os pobres de Paulo Portas"

“Paulo Portas diz que os mais pobres não se manifestaram no protesto convocado este sábado pela CGTP e que juntou milhares de pessoas” (dos jornais, 20 de Outubro de 2013)
O livro de Ryiszard Kapuscinski “Mais Um Dia de Vida: Angola 1975” é interessante a vários níveis, entre os quais retenho dois: por nos trazer um período fundamental da história fundacional do actual estado angolano e pelo retrato inesquecível de Luanda durante o êxodo dos Portugueses. Uma cidade composta por muitas cidades: a cidade de madeira que cresce nas ruas e se desloca para o porto, composta por uma multidão de caixotes que se amontoam e onde tudo se acumula; a cidade de pedra, vazia, espectral, a que resta quando a Luanda colonial se esvazia nos barcos para encerrar o ciclo marítimo dos lusíadas; a cidade efémera e vergonhosa que os brancos em debandada ergueram nas vizinhanças do aeroporto.

 A descrição de Kapuscinski é fantástica, sonâmbula. O autor, um polaco surpreendente, foi um dos poucos jornalistas estrangeiros que continuaram em Luanda e a partir daí se deslocaram para as frentes de combate. Podemos imaginá-lo, um homem grande da Europa Central, indiferente ao perigo e ao cheiro miasmático da morte, numa aposta sem sentido consigo mesmo, cada vez mais solitário na grande cidade. Há um momento em que ruma a Benguela, cruza barreiras atravessadas nas estradas e encontra a cidade dos brancos. “Zonas residenciais vazias, um luxo indescritível, um excesso estonteante de espaço para chegar, cem metros depois, ao deserto onde crescem os povoados africanos, adobe e bosta, contraplacado e chapa, sobrelotados.” Apesar do contraste chocante, os negros não ocuparam as casas abandonadas e sem guarda. O jornalista interroga-se sobre os motivos desta atitude e adianta a sua explicação: tal ideia não lhes passou pela cabeça. Os muito pobres, diz ele, “não procuraram retirar proveito pessoal, material, da nova situação de forças criada pela descolonização, porque para eles era inconcebível outra forma de vida diferente, aceitando o seu casebre e a sua tigela de mandioca como o único mundo que alguma vez hão-de conhecer ou almejar.”

No filme que relata a ocupação da Torre Bela, a herdade dos duques de Lafões que em 1975 foi ocupada por camponeses ribatejanos, há imagens que persistem. Entrando num salão, mulheres rurais abrem os aparadores de vinhático e vêem, com um misto de espanto e admiração, as toalhas de linho imaculadas, dobradas, escrupulosamente passadas a ferro. E não lhes tocam, não as põem em utilização, não as retiram das gavetas.

“Às Segundas ao Sol” é um inesquecível filme de 2002 de Fernando Léon de Aranoa, em que Javier Bardem é Santa, um operário despedido quando a crise atinge os estaleiros das Astúrias. Uma noite, Santa e dois amigos sem trabalho vagueiam pela cidade e introduzem-se, furtivamente nos jardins de uma casa abastada onde a namorada de Santa é babysitter. Com os patrões fora e as crianças a dormir, ela abre-lhes as portas da cozinha e mostra-lhes o interior. No quarto de vestir exibe o interior de um armário. Santa olha, estupefacto, os vários pares de sapatos de mulher alinhados e, depois de uma luz se lhe acender nos olhos, exclama, sem qualquer ironia: “Ah, o marido tem uma sapataria?”

Nos vários círculos da exclusão, os pobres de Paulo Portas ocupam, como os negros dos bairros de Benguela, os lugares mais profundos, secretamente irrevogáveis. Pertencem, assim pensava Kapuscinski, a um mundo que não muda, que Salazar interpretou superiormente e tentou confundir com a alma lusa. Este miserável perfeito só existe no subconsciente de Paulo Portas e nesse lugar é, curiosamente, o único elemento parado, voluntariamente desprovido, feliz com a sua miséria. Está num estádio inferior ao da resignação. A resignação pressupõe um incómodo, o desconforto de se imaginar uma outra realidade e, mesmo como possibilidade remota, a sua inclusão nela. A resignação tem em si, paradoxalmente e de forma ardilosa, a proto-ambição de mudança, porque é potencialmente provisória, precária, instável. Essa ousadia está completamente ausente da pobreza de Portas.

Os pobres de Portas são os condenados da terra antes da Internacional, as vítimas da fome perpetuamente agradecidas à amabilidade enlatada da Dra. Isabel Jonet. Os pobres de Portas são o povoléu agrilhoado e agradecido, a arraia-miúda confundida com “a convergência do sistema de pensões”, a gentalha aturdida com “o regime geral”, o escorralho adormecido com “a condição de recurso”, a ralé que “não aparece na televisão”.

Os camponeses da Torre Bela são insurrectos interruptus. Hesitaram no momento da sua libertação. As suas mãos e a comida que decerto prepararam mereciam a brancura das toalhas de linho, de que desistiram.

Santa e os camaradas asturianos foram derrotados pela deslocalização, pela flexibilização e pela crise das economias europeias, mas entraram sem culpa no quarto dos patrões.

Mas nos círculos mais exteriores – e esta verdade fere a testa dos opressores como uma espada de fogo – há seres cada vez mais livres, alguns e algumas dos quais são tão livres como Paulo Portas.


“Mais Um Dia de Vida: Angola 1975”, Ryszard Kapuscinski, Tinta da China, 2013
“Às Segundas ao Sol”, Fernando Léon de Aranoa, 2002

“Torre Bela”, Thomas Harlan, 1977

Luís Januário - Jornal I