“Paulo Portas diz que os mais pobres não se manifestaram no
protesto convocado este sábado pela CGTP e que juntou milhares de pessoas” (dos
jornais, 20 de Outubro de 2013)
O livro de Ryiszard Kapuscinski “Mais Um Dia de Vida: Angola
1975” é interessante a vários níveis, entre os quais retenho dois: por nos
trazer um período fundamental da história fundacional do actual estado angolano
e pelo retrato inesquecível de Luanda durante o êxodo dos Portugueses. Uma
cidade composta por muitas cidades: a cidade de madeira que cresce nas ruas e
se desloca para o porto, composta por uma multidão de caixotes que se amontoam
e onde tudo se acumula; a cidade de pedra, vazia, espectral, a que resta quando
a Luanda colonial se esvazia nos barcos para encerrar o ciclo marítimo dos lusíadas;
a cidade efémera e vergonhosa que os brancos em debandada ergueram nas
vizinhanças do aeroporto.
No filme que relata a ocupação da Torre Bela, a herdade dos
duques de Lafões que em 1975 foi ocupada por camponeses ribatejanos, há imagens
que persistem. Entrando num salão, mulheres rurais abrem os aparadores de
vinhático e vêem, com um misto de espanto e admiração, as toalhas de linho
imaculadas, dobradas, escrupulosamente passadas a ferro. E não lhes tocam, não
as põem em utilização, não as retiram das gavetas.
“Às Segundas ao Sol” é um inesquecível filme de 2002 de
Fernando Léon de Aranoa, em que Javier Bardem é Santa, um operário despedido
quando a crise atinge os estaleiros das Astúrias. Uma noite, Santa e dois
amigos sem trabalho vagueiam pela cidade e introduzem-se, furtivamente nos
jardins de uma casa abastada onde a namorada de Santa é babysitter. Com os
patrões fora e as crianças a dormir, ela abre-lhes as portas da cozinha e
mostra-lhes o interior. No quarto de vestir exibe o interior de um armário.
Santa olha, estupefacto, os vários pares de sapatos de mulher alinhados e,
depois de uma luz se lhe acender nos olhos, exclama, sem qualquer ironia: “Ah,
o marido tem uma sapataria?”
Nos vários círculos da exclusão, os pobres de Paulo Portas
ocupam, como os negros dos bairros de Benguela, os lugares mais profundos,
secretamente irrevogáveis. Pertencem, assim pensava Kapuscinski, a um mundo que
não muda, que Salazar interpretou superiormente e tentou confundir com a alma
lusa. Este miserável perfeito só existe no subconsciente de Paulo Portas e
nesse lugar é, curiosamente, o único elemento parado, voluntariamente
desprovido, feliz com a sua miséria. Está num estádio inferior ao da
resignação. A resignação pressupõe um incómodo, o desconforto de se imaginar
uma outra realidade e, mesmo como possibilidade remota, a sua inclusão nela. A
resignação tem em si, paradoxalmente e de forma ardilosa, a proto-ambição de
mudança, porque é potencialmente provisória, precária, instável. Essa ousadia
está completamente ausente da pobreza de Portas.
Os pobres de Portas são os condenados da terra antes da
Internacional, as vítimas da fome perpetuamente agradecidas à amabilidade
enlatada da Dra. Isabel Jonet. Os pobres de Portas são o povoléu agrilhoado e
agradecido, a arraia-miúda confundida com “a convergência do sistema de
pensões”, a gentalha aturdida com “o regime geral”, o escorralho adormecido com
“a condição de recurso”, a ralé que “não aparece na televisão”.
Os camponeses da Torre Bela são insurrectos interruptus.
Hesitaram no momento da sua libertação. As suas mãos e a comida que decerto
prepararam mereciam a brancura das toalhas de linho, de que desistiram.
Santa e os camaradas asturianos foram derrotados pela
deslocalização, pela flexibilização e pela crise das economias europeias, mas
entraram sem culpa no quarto dos patrões.
Mas nos círculos mais exteriores – e esta verdade fere a
testa dos opressores como uma espada de fogo – há seres cada vez mais livres,
alguns e algumas dos quais são tão livres como Paulo Portas.
“Mais Um Dia de Vida: Angola 1975”, Ryszard Kapuscinski,
Tinta da China, 2013
“Às Segundas ao Sol”, Fernando Léon de Aranoa, 2002
“Torre Bela”, Thomas Harlan, 1977
Luís Januário - Jornal I
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