segunda-feira, 31 de março de 2014

Resistir é preciso e é urgente!


Voltou o pé descalço, a fome envergonhada ou às claras, miúdos às centenas que vão para a escola sem nada no estômago. O empobrecimento da pátria é um ultraje e uma má memória para quem, como eu, por exemplo, é do tempo da miséria religiosa do salazarismo.

Com o ar grave e a voz timbrada que se lhe conhecem, o dr. Pedro Passos Coelho foi às televisões e disse: "Vou tomar medidas para erradicar a fome no nosso país." Além do tropeção no idioma (que lhe é comum), esclareço que quem "toma medidas" são os alfaiates e as costureiras; ele, Passos, como governante "toma decisões." Depois, há uma insultuosa falta de pudor, quando assevera que irá "erradicar a fome no nosso país." Não foi ele que proclamou o "empobrecimento" dos portugueses como estratégia necessária ao equilíbrio das finanças?

Semeou a fome, a miséria, o desemprego. Incitou os jovens a sair da pátria; acabou com milhares e milhares de empresas; perseguiu, e persegue, os funcionários públicos, os pensionistas, os reformados; corta ferozmente nos salários, nas pensões, nas receitas ordinárias dos mais desvalidos; os velhos são ignorados e, pior do que isso, desprezados como objectos inúteis; tripudia sobre os valores mais sagrados da democracia; acabou com os feriados do 1.º de Dezembro e do 5 de Outubro e anda, ele e os seus, com emblemas da bandeira republicana ostensivamente na lapela. A lista de iniquidades, aleivosias e indignidades é a mais longa registada em Portugal na II República. Não é nunca de mais repetir os malefícios feitos por este homem ao País, pois a máquina de propaganda do Governo, que custa fortunas ao erário público, não deixa de nos matraquear com embustes e falsidades.

O problema destas políticas celeradas é que muitas delas são tão fundas que dificilmente podem ser anuladas. Depois, uma inércia e uma aparente resignação populares deixam livre o caminho para as manigâncias. Já se viu que o PS de António José Seguro não dispõe nem de força, nem de ideologia, nem de massa crítica que possam enfrentar, com denodo e eficácia, a formidável tempestade desencadeada por estes gestores de empresas, que transformaram Portugal numa república de gente amorfa.

Quem vier a seguir a esta gente, se for outra com rumos diferentes, vai ter uma tarefa hercúlea para inverter a tendência. Não me parece, francamente não me parece, que o actual secretário-geral do PS, se for o caso, disponha de estilo político e de poder necessários à transposição. Aliás, a chamada de Jorge Coelho e de José Sócrates à primeira linha da luta, revela até que ponto é elevada a preocupação dos dirigentes socialistas. Apesar da violência da política de Passos, a diferença, nas sondagens, entre os dois partidos "de poder", é mínima.

A miséria que alastra no País, o aumento do número de pobres, ainda há dias anunciado pelas estatísticas, são de molde a deixarem-nos encrespados. Voltou o pé descalço, a fome envergonhada ou às claras, miúdos às centenas que vão para a escola sem nada no estômago. Voltou o país esmoler, de mão estendida à porta das igrejas. Voltaram as instituições de apoio social a garantir pão e sopa a milhares de portugueses. O empobrecimento da pátria é um ultraje e uma má memória para quem, como eu, por exemplo, é do tempo da miséria religiosa do salazarismo. Em três anos de governação, Passos Coelho e os seus fizeram-nos regredir cinquenta, e depredaram os sonhos e as esperanças dos nascidos depois da queda do fascismo. Não podemos permitir que o agravo prossiga. É preciso voltar a escorraçar o medo.

Relembrar Abril e a Resistência
Uma das vozes mais genuínas e poderosas da Resistência, antes e depois do 25 de Abril, é a de Manuel Alegre. Os poemas que nos ofereceu, com generosa grandeza, constituem um imparável acervo de esperança e de incitamento à não renúncia. Um grande poeta, na tradição de combate que marca a nossa lírica como um emblema e uma alusão à decência e à dignidade, mesmo quando tudo parece perdido. Nesta quadra de memórias e de lembranças do sonho, a Dom Quixote publicou uma selecção de alguns dos mais belos e significativos poemas do autor de "Trova do Vento que Passa", que tem sido o hino de várias gerações. "Há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não." O livro, "País de Abril", insere textos poéticos estranhamente premonitórios do que iria acontecer, anos mais tarde, numa madrugada luminosa. E simbolizam a coragem e a probidade moral e cultural de um homem que sempre recusou capitular ou trair. "País de Abril" é, além de tudo o mais, um texto estimulante, nestes tempos sombrios.


b.bastos@netcabo.pt

domingo, 2 de março de 2014

Acordaram o urso e dizem que a culpa é do urso.


Há 161 anos, a Rússia envolveu-se numa guerra contra a França, a Grã-Bretanha, o Império Otomano e a Sardenha. A Rússia perdeu. O conflito, entre 1853 e 1856, ficou conhecido como a Guerra da Crimeia.
Hoje, é outra vez e desgraçadamente a Crimeia. Mas, se as razões para a Rússia ser novamente protagonista não são talvez as melhores, são no entanto razões diferentes.
Como se sabe, o até há algum tempo presidente ucraniano foi derrubado e está agora refugiado na Rússia. Aqueles que o fizeram cair, esses, dizem-se "pró-europeus".
A verdade é que Ianukovitch, um patifório com quem ninguém de bom trato tomaria chá, tinha sido eleito em 2010, com um mapa dos resultados eleitorais revelador. Realmente, ganhou, e por grande margem, o leste e sul do país, e perdeu, e por grande margem, o ocidente para Timochenko, a sua rival (que também não é flor que se cheire). Feitas as contas, Ianukovitch ganhou um Estado partido a meio, não por motivos políticos mas por diferenças profundas de natureza étnica, linguística e cultural.
A Ucrânia é multinacional. Uns, identificam-se como etnicamente ucranianos; outros, com a mesma convicção, dizem-se russos ou russófonos. De permeio, judeus, tártaros e outros grupos de menor expressão. Para ajudar à festa, e como se viu nas últimas eleições, os dois grupos principais estão muito concentrados territorialmente. Na Crimeia, por exemplo, vivem 58% de russos, 12% de tártaros e "apenas" 24% de ucranianos em sentido estrito (embora esta qualificação seja absurda).
Como quem foi ocupando o poder nunca quis esbater este fosso, a Ucrânia nunca foi, não é e não sei quando poderá vir a ser uma democracia. De facto, quando a população vota em função da etnia, os resultados só cristalizam e agravam uma oposição entre grupos, não exprimem a vontade de um, e só um, povo. E, quando assim é, o grupo que "ganha" ou está "por cima" quer tudo; e quer, sobretudo, mostrar ao outro que é ele que manda.
Assim se explica que o urso russo tenha acordado, e é erro muito grave deixar de lado este factor e a força da História e do "sangue". Que mostre agora as garras na Crimeia e que Putin tenha pedido à Câmara alta do Parlamento que o autorize a enviar tropas para a Ucrânia.
Dirão alguns, agrilhoados numa visão fechada do "nós" contra o "outro" (o "mau"): a Rússia é imperialista, a Rússia é perigosa. A esses, respondo com um exercício.
Imaginem que os Estados Unidos tinham ficado sem uma parcela do seu território, entregue a um país vizinho e onde ficaram milhões de americanos. Imaginem que nesse território os EUA tinham conservado uma base naval fundamental para os seus interesses estratégicos. E imaginem, finalmente, que os EUA, com algum fundamento, sentiam que os "seus" norte-americanos e a base naquele tal território estavam em risco. Ficavam quietos? Brincamos, é?
Para quem a saiba, a História (aquela coisa inútil que não serve para nada) ajuda muito. Quando se quer evitar um conflito que pode vir a ser muito grave, a primeira tarefa é tentar saber onde está a corda e qual a sua resistência. Porque, quando a corda se parte, é tarde e logo se ouve o rufar dos tambores da guerra.

Azeredo Lopes - JN