sexta-feira, 23 de abril de 2010

Maia para os amigos, herói do Carmo para a História.


“Aparentemente uma homenagem igual a tantas outras que depois da sua morte se têm multiplicado, em tão gritante contraste com o silêncio distraído ou cúmplice com que em vida se assistiu à marginalização sistemática, à verdadeira perseguição de que foi vítima. Foi preciso morrer para então lhe serem prestadas todas as honras, num coro de inquietante unanimismo que, acredito, o incomodaria tanto ou mais do que as injustiças e humilhações que lhe doíam a título pessoal, mas mais ainda porque sabia visarem um colectivo a que se honrava de pertencer e que dignificou como ninguém: os «implicados no 25 de Abril»… Como lembrou Matos Gomes, aquando da entrega da mais alta condecoração nacional (Ordem Militar da Torre e Espada), à viúva, Natércia Maia, «se é legítimo pensar que em vida nunca lhe outorgariam esta condecoração, a verdade é que até a sua morte foi um acto revelador das suas excepcionais qualidades, pois de novo congregou companheiros e amigos e neutralizou os que, ao arrepio das suas consciências, mais uma vez, como no Terreiro do Paço, como no Carmo, como no dia do seu funeral, tiveram de se vergar perante ele».

Mas não foi disso que se falou nessa homenagem que eu dizia ser só aparentemente mais uma. Não se falou do passado, e dos seus fantasmas, apesar de evocarmos alguém já desaparecido. Não evocámos a memória de Salgueiro Maia em litanias de soturna melancolia, tão ao nosso jeito, mas tão ao contrário do recado que nos deixou: que no seu enterro entoássemos Grândola e a Marcha do MFA.

Traçámos-lhe um perfil a partir do muito que generosa e espontaneamente ele foi distribuindo por quem teve o privilégio de o conhecer. E o que é a vida, senão este caminhar para a memória que os outros guardarão de nós? Maia pode orgulhar-se de ter deixado marcas muito fortes que o passar do tempo, ao invés de apagar, mais aviva e ilumina. Dos camaradas de armas, aos companheiros de farra, aos amigos de todas as horas, os testemunhos multiplicaram-se, tocantes de sinceridade, não raro atravessados pela emoção, mas incisivos no retrato a corpo inteiro de uma personalidade e percurso incomuns.

E no entanto, ouvindo esses testemunhos humanos a perplexidade foi crescendo em mim e acredito que nos restantes convidados: Aqueles jovens para quem quisemos passar uma versão humanizada de um herói, respeitando, aliás, a sua natural relutância em galgar tão alto patamar (fazia questão de dizer que não acreditava em heróis, só em homens a sério…), terão captado a imagem mais fiel e verdadeira de Salgueiro Maia, ou apenas uma aproximação grosseira em que a nossa memória, o melhor da nossa memória, teimava em o aprisionar?

E quanto mais tentava recordar o homem concreto, mais os seus contornos se diluíam cedendo à sua recriação no belo filme Capitães de Abril e, mais ainda, retinha as palavras de Maria de Medeiros, em resposta a reparos de alguma falta de rigor histórico no tratamento do personagem: «Às vezes não é contando com rigor como tudo aconteceu, como as coisas se passaram que se entende o seu significada mais fundo…»

Então, entre o Maia que todos conhecemos e o herói do Carmo que zonas de proximidade e de afastamento?

O que há de comum entre o menino que, estranhamente não gostava de futebol e, ao contrário, preferia os jogos de guerra, exibindo um particular gosto em organizar e comandar, e o capitão operacional que na hora da verdade não hesita um segundo: «eu é que vou…»? Entre o feroz individualista, avesso à cadeia de comando, e o militar exemplar, louvado por chefes e venerado pelos seus homens? Entre as notáveis qualidades de «aprumo, lealdade, disciplina, etc, etc,» e esse gosto em incomodar, em provocar, organizando verdadeiras reuniões conspirativas (ao som das canções de resistência) nos intervalos da guerra? Entre a rígida formação militar que recebeu e a tão oposta visão cultural dos povos que aprendeu a conhecer e a admirar?

O que há de comum entre a total ausência de vaidade com que rudemente responde à glorificação fácil com um «fiz apenas o que tinha que ser feito», e o orgulhoso desprendimento com que rejeita, para gáudio de inimigos e desespero de amigos, qualquer cargo político-militar, a uns e outros desarmando, sereno mas definitivo: «Foi de tal maneira belo, que depois dele nada mais digno pode acontecer na vida de uma pessoa»?

O que há de comum entre a sonora gargalhada à Maia, e aquela nuvem de tristeza que lhe tolda o olhar, mesmo na felicidade, tão intensa quanto breve, que lhe foi dado viver? Ou entre a brusquidão e rispidez dos gestos, o trato difícil feito de teimosia e obstinação, por vezes de mordacidade extrema, e a ternura envergonhada e fugidia que não regateou àqueles de quem gostava?

A nossa situação tinha esta singularidade: Queríamos falar do homem, mas não podíamos ignorar o herói. Queríamos falar do Maia, mas o herói do Carmo sobrepunha-se. Involuntariamente caminhávamos para o núcleo do mistério. Pensando decifrá-lo mais o adensávamos. Tentámos responder à pergunta: Como nascem os heróis? Pareceu-nos que a nossa específica condição de amigos, de testemunhas directas, nos tornava intérpretes privilegiados. Falámos muito do homem, das suas qualidades de determinação, coragem, frontalidade, inteireza, coerência, lealdade. Somámos episódios, vivências, experiências, e até lembrámos a fala premonitória: «havia de ser bonito…eu pela Avenida da Liberdade abaixo…até ao Terreiro do Paço…», como se tudo isso formasse um capital valioso que o predestinava a grandes feitos, pelos quais entraria discreta e directamente na história. No limite fizemos uma leitura retrospectiva do passado, de modo a demonstrar a longa e determinada preparação para o heroísmo.

Esquecemos que ninguém se prepara consciente ou inconscientemente para um momento a todos os títulos improvável. Ninguém se prepara para um gesto, um acto desmedido na sua natureza e nas suas consequências. Um acto heróico. As excepcionais qualidades do Maia, soberbamente comprovadas na jornada que mudou a sua e as nossas vidas, e sem as quais nada teria sido como foi, terão sido condição necessária mas não suficiente.

Entre o Maia que sai de Santarém, e o herói do Carmo operou-se um salto que na ordem do biográfico é de horas, mas que na ordem do simbólico suspende o próprio tempo.

Não estamos já na ordem da causalidade histórica, psicológica ou outra, mas na ordem do imponderável, ou se quisermos, nesses raros momentos em que a história marca encontro com os seus agentes, e como que passa através deles, servindo-se até do que noutros planos pode parecer defeito. Porque se é verdade que a história é um rio silencioso em que soçobram os sonhos mais ambiciosos e exaltantes, não o é menos que é deles que se alimenta esse imenso caudal de onde, de longe em longe, sobem à tona sementes à espera de ventos propícios. É essa a hora dos heróis, sujeitos e agentes da história, através dos quais ela se redime do seu aparente e enigmático não sentido. Foi essa a hora do Maia, embora ele não o soubesse ou o soubesse de uma outra maneira: «O herói a si assiste, vário e inconsciente…». A sua grandeza foi, glosando a tragédia grega, enfrentar o Minotauro insaciável e não adiar o tempo e a vitória que, no dizer de Francisco Sousa Tavares, «veio ter com ele, obediente e fascinada». No Carmo, Salgueiro Maia foi mais, muito mais do que a soma de todas as suas qualidades. Foi maior e melhor do que ele próprio, porque arrastado por forças mais poderosas do que ele: «Aqui ao leme sou mais do que eu…»

Nós, que conhecemos o homem e o herói, e fomos testemunhas maravilhadas e incrédulas dessa prodigiosa metamorfose, tentámos integrá-los num todo. Não o conseguiremos nunca. Eles já não nos pertencem. Não por falta de biografia, mas por excesso de sonho. Poucos contam as versões reais do Maia, face à intensa irrealidade do Herói do Carmo. Poderemos sempre mitigar esse vazio e alimentar a ilusão de os ter mais perto, repetindo com Lídia Jorge :”Nós aqui soubemos logo, dois dias depois, que vocês tinham feito uma revolução. Mas nunca pensámos que chegássemos a ver os heróis!”

Mas, se quisermos preservar as sementes do sonho, aquele fio de azul que haverá sempre em todos os escombros, reencontrar-nos-emos sempre com Manuel Alegre, cronista-mor de reinos imaginários (e tão reais): “Diz-se o teu nome e sais de Santarém/trazendo a espada e a flor da liberdade” ou com João de Melo: “Oficial e cavalheiro que sou, entrarei firme nos portões do Carmo, e ninguém saudarei pelo caminho…”

EM HOMENAGEM A TODOS OS QUE CONTRIBUIRAM PARA A ALVORADA QUE TODOS ANSIAVAMOS.

25 DE ABRIL SEMPRE.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Crimes da Igreja – Em nome do Senhor.


No início deste ano, o Papa Bento XVI citou Jesus Cristo para se referir aos casos de abuso sexual de menores na Igreja Católica: “ Os que escandalizam as crianças merecem que lhes coloquem uma mó de moinho ao pescoço e os atirem ao mar”. Embora em discurso figurado, o Papa sugeriu uma punição para os clérigos criminosos, ou seja, uma mudança no discurso apologético que se iniciou na década de 90 com João Paulo II – um discurso que reconhecia culpa na actuação da Igreja, mas que não apresentava reparações ou castigos. Nesses anos, João Paulo II lamentou a excomunhão e maldição dos católicos ortodoxos, a conversão forçada dos sérvios durante a II Guerra Mundial, o saque de Constantinopla, admitindo ainda que Galileu, preso pela Inquisição em 1632, estava certo ao dizer que a Terra não era o centro do Universo. O furor apologético do Vaticano atingiu o seu ponto mais alto em 2000, ano do Jubileu, quando o Cardeal Pietro Marini, em nome do Papa, produziu e mandou ler nas igrejas de todo o mundo uma lista que começava assim: “A referência a erros e pecados deve ser séria e capaz de especificar a culpa. No entanto, tendo em conta os pecados cometidos ao longo de vinte séculos, tem, necessariamente, de ser bastante resumida.” E esta era, resumidamente, a lista: Cruzadas, Inquisição, perseguição de judeus, tortura institucionalizada, injustiças para com as mulheres, conversão forçada de povos indígenas, e escravatura. No entanto, além das Cruzadas e de Galileu, tão longe no tempo, há um passado mais recente de crimes e omissões.
1. Irlandagate.
Em 2000, deu-se inicio a investigação conhecida como Ryan Report, que questionou milhares de vítimas, clérigos e funcionários de escolas e orfanatos na Irlanda que, sendo estatais, eram geridos pela Igreja. O Relatório Ryan, publicado em 2009, refere que as violações eram endémicas nos orfanatos e escola para rapazes, na sua maioria geridas pela ordem Christian Brothers. Nas instituições femininas, a cargo da ordem Sisters of Mercy, as raparigas sofreram menos abusos sexuais, mas eram sacos de pancada.
O Relatório concluiu ainda que os funcionários eclesiásticos protegeram de forma contínua os pedófilos, no que considera ser “uma cultura ao serviço do secretismo.” Entre as décadas de 30 e 90, sempre que confrontados com os abusos, as autoridades religiosas limitavam-se a mudar os criminosos de instituição, e a violência continuava noutro lugar.
2. O Cardeal sem lei.
Em 2002, sob pressão da comunidade e de elementos da Igreja, o Arcebispo de Bóston, Bernard Law, demitiu-se do cargo por ter sido revelado que ele sabia da actuação de padres que molestavam crianças. Mas tal como na Irlanda, esses sacerdotes eram mudados de lugar nos EUA, e os crimes repetiam-se. Uma investigação liderada pelo Procurador-geral do Estado de Massachusetts produziu um relatório publicado no final de 2003, afirmando que mais de 1000 crianças foram abusadas sexualmente por padres católicos, ao longo de seis décadas na arquidiocese de Bóston.
Sem prestar contas à Lei dos Homens, Law mudou-se para Roma onde, como Cardeal participou na eleição do Papa Bento XVI e onde tem a seu cargo a Basílica de Santa Maria Maggiore, uma das maiores de Roma.
3 . Tempos de Guerra
O Papa é o líder máximo da Igreja, mas também é um chefe de Estado. Como tal, o Vaticano, ao longo da história, tem negociado com outros Estados de forma a proteger os seus interesses. Sobre as actividades diplomáticas do Vaticano, pode dizer-se que estão mais próximas dos ensinamentos de Maquiavel e menos inspiradas na palavra de Cristo. O Vaticano foi o primeiro estado a assinar um acordo com Mussolini. Quatro anos mais tarde, em 1933, fez o mesmo com Hitler. Durante a II Guerra Mundial, o Vaticano manteve-se oficialmente neutro. Mas, no território que mais tarde se tornaria Jugoslávia, padres católicos foram cúmplices no extermínio de milhares de sérvios, judeus e ciganos.
O posicionamento do Papa durante a II Guerra Mundial prova que a Igreja Católica não é apenas uma religião que se rege apenas pelas Sagradas Escrituras. Tal como qualquer outro Estado é participante da “real politik”, faz parte desse jogo de interesses e desengano, tal como fizeram, durante a Guerra, a Espanha de Franco ou o Portugal de Salazar – aliás, a bênção da Igreja às duas ditaduras ibéricas não é segredo. O Vaticano andou de mão dada com regimes que perseguiam, torturavam e matavam. Tanto em Espanha como em Portugal, a Igreja colaborou com os ditadores para impor a sua moral e as suas leis.
4. Banqueiros de batina.
O argumento, de tantas vezes usado, já perdeu força. Mas a pergunta ainda tem validade: se Jesus Cristo disse que era mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus, por que razão é o Vaticano um aglomerado de luxo e ostentação dourada? Este pequeno Estado soube, por exemplo, escapar à recente crise financeira. Nos meses anteriores ao colapso dos bancos, o Vaticano retirou os seus investimentos de instituições financeiras e concentrou-se no ouro e no mercado imobiliário. Em 2008, a fortuna do Vaticano estava avaliada em 1.5 mil milhões de euros.
Na década de 80, o Instituto de Obras Religiosas (IOR), banco oficial da Santa Sé, viu-se envolvido num escândalo financeiro do qual resultou o homicídio de Roberto Calvi. Lavagens de dinheiro da Máfia Italiana e dos traficantes de droga sul-americanos. O Arcebispo Marcinkus, protegido pelo Vaticano, nunca foi a tribunal, apesar de investigado pelas autoridades italianas e americanas.
5. Mãe África
É o continente onde, diz a Ciência, nasceu o Homem. No entanto, parte da Igreja nega a Teoria da Evolução das Espécies, enquanto outra tenta uma coexistência pacífica entre o simbolismo de Adão e o aparecimento do Homo Sapiens. È verdade que algumas organizações religiosas realizaram nas últimos décadas um trabalho meritório em África, mas também é verdade que a Igreja Católica contribuiu para muitos dos cataclismos do continente – começando pela escravatura, passando pela conversão forçada dos povos indígenas e acabando na proibição do uso do preservativo como forma de prevenir a propagação da sida. Não esquecendo o Ruanda, o pais mais católico de África, cerca de 80% da população – onde padres e bispos apoiaram, durante anos, as teorias raciais que resultaram, na década de 90, no genocídio levado a cabo pela etnia hutu: 800 mil tutsis foram chacinados.
6. In nomine domini
Não se pode ocultar o trabalho benemérito da Igreja, mas também não se pode aceitar os seus crimes. Desde 1962 que as instruções do Vaticano, sobre abusos, são claras: perante qualquer denúncia, a prioridade é o secretismo. Tudo isto, porque a Igreja se tem em demasiada conta, acredita na sua infalibilidade, esquecendo-se que foi concebida por humanos e que muitas das suas regras – o celibato ou a ordenação de mulheres – nem sequer aparecem nas escrituras. São invenções dos homens, numa época em que não se sabia sequer que a Terra era redonda e em que a superstição se misturava com a necessidade de controlar os fiéis. Porque se considera dona de uma verdade única, não acessível a todos os homens, a Igreja e os seus lideres têm-se num patamar moral mais elevado, logo mais importante – um Bispo é mais susceptível de ser protegido do que um órfão de um país qualquer. Mas afastando essa noção de infalibilidade – segundo a doutrina, o Papa é escolhido por Deus – pode ser que a Igreja funcione apenas como tantas outras organizações criadas pelos homens, sejam governos de países, bancos de investimento ou exércitos guerrilheiros. Uma coisa é certa: se, em vez de santos infalíveis, os papas fossem apenas presidentes de uma grande multinacional de infantários, onde se praticassem abusos sexuais, as suas vestes brancas já não nos pareciam tão impolutas. Nem o seu silêncio seria perdoado.

Hugo Gonçalves – Maxmen Abr/2010.