quarta-feira, 18 de julho de 2012

A fronteira da escravatura.


Os valores da sociedade portuguesa estão a mudar. Para melhor? O futuro é sempre melhor que o passado. Mas há fases no presente em que os valores parecem ter regressado a passados de trevas. Hoje já confundimos direitos que conquistámos quando abolimos a escravatura com o dever de praticar a caridade.
Os valores da sociedade portuguesa estão a mudar. Para melhor? O futuro é sempre melhor que o passado. Mas há fases no presente em que os valores parecem ter regressado a passados de trevas. Hoje já confundimos direitos que conquistámos quando abolimos a escravatura com o dever de praticar a caridade.
Na semana passada chegou ao espaço mediático a notícia sobre as condições em que estavam a viver cerca de 50 pessoas que trabalhavam para a Opway e a Somague na construção do centro de dados da PT na Covilhã. Começou no "Jornal do Fundão" e chegou a uma reportagem na SIC Notícias. Aquilo, não se queria acreditar, estava a passar-se em Portugal. Abandonados num armazém sem água, nem luz, nem condições sanitárias. Trabalhadores, boa parte imigrantes, a trabalharem para um empresa subcontratada por duas construtoras de referência que estavam ao serviço de uma das mais importantes companhias portuguesas cotadas em bolsa. Todas elas, Opway, Somague e PT têm vastos relatórios sobre sustentatibilidade e discursos sobre a responsabilidade social. Nenhuma se considerou realmente responsável pelas condições que estavam a dar a quem trabalhava para elas, ainda que por via de um subempreiteiro.
Há alguns anos que nos vamos habituando à falta de ética nas empresas. Um défice de ética que as empresas na Europa como nos Estados Unidos foram corrigindo com relatórios em cima de relatórios sobre sustentabilidade e responsabilidade social que são basicamente "papas e bolos para enganar tolos" ou asas de anjos com sombra de demónio, como uma vez tão bem retratou a revista "The Economist". As mais recentes revelações sobre o comportamento do Barclays e, suspeita-se, de outros bancos, na fixação da Libor, taxas de juro determinantes para o custo do crédito de empresas e famílias, revelou mais uma vez que a ética corporativa anda pelas ruas da amargura, para não se dizer que a indignidade tomou conta do poder nas empresas.
Que as empresas, da banca às telecomunicações, da construção à industria de vestuário, vivem tempos em que a ganância dita a queda de todos os valores já todos estamos mais ou menos habituados. Maus hábitos, é verdade, mas já não nos surpreendem.
O que não sabíamos é que cada um de nós, individualmente, também já estava contagiado. Que cada um de nós também já tinha deixado cair valores ganhos desde o tempo em que caiu a escravatura e, mais tarde, os sindicatos estabeleceram fronteiras de humanização do trabalho.
A história dos trabalhadores da Covilhã, a viverem num armazém, foi chocante por aquilo que se é capaz de fazer para ganhar uma margem no negócio. Mas foi mais chocante ainda pela imagem que deu da sociedade indiferente em que nos transformámos.
A primeira reacção às condições degradantes de vida daquelas pessoas foi contactar o Ministério da Solidariedade Social como se de um caso de caridade se tratasse. Há uns anos, não muitos, o sítio onde todos nós buscaríamos uma resposta seria no Ministério do Trabalho, mais concretamente na Inspecção Geral do Trabalho. E a Opway, a Somague e a própria PT teriam muito que explicar, não se desculpando com subempreitadas ou com empregos que vão criar.
Houve também um tempo, na escravatura e nos primeiros tempos da revolução industrial, em que o medo fez com que tudo se aguentasse. Até ao dia em que se perdeu o medo. O que é mais aterrador na actual crise é a impossibilidade de qualquer sociedade europeia aguentar a degradação de valores que as lideranças querem impor para ultrapassar os actuais problemas.

Helena Garrido – Jornal de Negócios Online

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