domingo, 24 de junho de 2012

Uma sardinha, várias bocas.


À mesa lá de casa, as conversas sobre os tempos de miséria em que o meu pai tinha de partilhar uma sardinha com os irmãos (e não eram poucos...) só vinham à baila quando, por qualquer motivo, se discutia a abastança que o desenvolvimento económico nos trouxera. Havia um lado quase pitoresco naqueles relatos, resultante da distância, que eu era incapaz de medir, entre a altura em que o meu pai teve de pedir uns socos emprestados para fazer o exame da 4.ª classe e a altura em que eu pedia ao meu pai dinheiro para ir à discoteca, ou para comprar uma sapatilhas xpto.
Não é que hoje consiga alcançar com maior nitidez a rudeza desses dias em que o meu pai se fez alfaiate para garantir a subsistência da família. Mas hoje consigo perceber melhor a rigidez que tomava conta da face do meu pai, quando nos lembrava (a mim e à minha irmã) que era errado dar como adquirido que aqueles tempos já mais regressariam.
Regressaram. Seguramente (ainda) não com a extensão das décadas de 60 e 70. Mas regressaram.
O meu pai trabalhava de sol a sol e recebia, em troca, meia dúzia de escudos. Não era escravidão, mas andava lá perto. Hoje, pululam na Internet os anúncios de pessoas desesperadas, capazes de trocar o seu trabalho por comida. Não é escravidão, mas anda lá perto.
Hoje, somam-se factos atrás de factos que, juntos, nos pregam um longo frio na espinha.
As famílias estão a poupar como nunca na alimentação: as empresas de retalho vivem a pior crise desde 1974, com falências em catadupa e quebras de vendas sempre a crescer.
O desemprego segue uma impressionante trajetória ascendente e são já mais de 300 mil as pessoas que não têm emprego nem qualquer subsídio estatal.
A economia afunda bem mais depressa do que podia julgar-se: a queda da receita fiscal está já muito além do que o Governo previa.
O saldo da Segurança Social deteriora-se, por via do aumento dos subsídios a pagar e da diminuição das contribuições e quotizações para o sistema.
A teoria do bom aluno provou as suas expectáveis limitações: mesmo fazendo tudo direitinho, tal e qual a troika nos exigiu, a meta do défice está cada vez mais longe. Vale o mesmo dizer: novas medidas de austeridade estão cada vez mais perto. E com elas acentuar-se-ão ainda mais as fragilidades desse crescente exército de desempregados, de explorados, de marginalizado que campeia pelas nossas cidades, vilas e aldeias.
Era evitável o regresso aos tempos em que, à mesa, uma sardinha tem de satisfazer várias bocas? Era. Consumado isto, o que nos deve preocupar agora é amenizar a extensão do problema. Como? Não sei. E o que mais temo é que seja verdadeira esta sensação de que quem manda também não saiba.


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