sexta-feira, 8 de junho de 2012

O Futebol sem hinos nem bandeiras.


Nos idos anos de 1960, o regime salazarista aproveitou bem o sucesso da selecção portuguesa de futebol no Mundial de 1966. O branco José Augusto cruzava-se com o negro Eusébio no terreno de jogo e esta imagem de dois jogadores de cor diferente mas de uma mesma equipa servia ao regime para promover a ideia de que em Portugal a harmonia racial vingava. A Guerra Colonial, essa, não passaria de propaganda estrangeira e maquinação soviética.
Nas duas últimas décadas, o regime, agora democrático, não fez menos uso nacionalista do futebol do que a ditadura. Assim que a selecção nacional de futebol começou a comparecer mais regularmente nos grandes eventos internacionais, o que sucedeu a partir de 1996, governos e primeiros-ministros procuraram sempre ficar na primeira fila da fotografia. Emoldurados pelos jogadores, pretenderam assim subitamente adquirir a popularidade perdida no terreno legislativo.
Falo sobre estas coisas porque se dá o caso de gostar muito de futebol e de não ter simpatia nenhuma por qualquer tipo de nacionalismo. Estes dois factos fazem-me a vida um pouco difícil nestes dias em que Cavaco Silva resolveu presentear os futebolistas da selecção portuguesa de futebol com um pacote de pastéis de Belém, depois de lhes pedir que vencessem a selecção alemã no próximo sábado.
Neste cenário, a minha tarefa não é simples porque tenho que lutar contra dois fogos que deflagram quase em simultâneo. Se por um lado devemos criticar o entusiasmo nacionalista que a propósito do futebol toma conta do espaço público e dos meandros políticos, por outro há que exercer essa crítica sem cair numa retórica anti-futebolística que não raras vezes acolhe uma concepção elitista da cultura, em que só há lugar para o erudito ou para o tradicional de que erudito gosta, nunca para um fenómeno de cultura popular urbano, de massa e globalizado.
O difícil equilibrismo que este artigo comporta é ainda assim um risco necessário se queremos denunciar dois elementares perigos que resultam da associação entre futebol e nacionalismo.
Em primeiro lugar, o perigo de acabarmos com o futebol ou, pelo menos, de retirarmos qualquer prazer estético à observação de um jogo de futebol. Que exista quem não goste de futebol mas goste de acompanhar os jogos da selecção portuguesa de futebol porque são portugueses, tal é sintoma de que o futebol é cada vez menos parte dos filmes futebolísticos que nos servem. Dir-me-ão que o facciosismo não é menor – pelo contrário – a nível clubístico, mas aqui é mais difícil distinguir o que começou primeiro, se o gosto pelo futebol, se o gosto pelo clube.
Em segundo lugar, há o perigo de através do futebol darmos alento aos sentimentos nacionalistas. É verdade que a tese dominante diz que o desporto tem um efeito pacificador, que se trata de uma forma de luta civilizada, um jeito adulto de fazer a guerra a brincar. Mas esta leitura, que não deve ser simplesmente renegada, tem também os seus limites. A paz não é necessariamente um tempo distinto da guerra e por vezes é apenas a antecâmara da guerra. A idealização da harmonia racial em 1966 era bem a outra face de uma guerra sem quartel.
Enquanto adepto de futebol e crítico de todos os nacionalismos, resta- -me desejar que o futuro nos traga menos tempo de antena dedicado ao futebol e melhor tempo de antena dedicado ao futebol. Que em vez das horas e horas de reportagens sobre as bandeiras nacionais à janela, tenhamos direito a uma só hora de bom comentário técnico.
Não peço que o futebol se torne um campo reservado aos especialistas, como infelizmente sucede com a economia, mas se temos direito a ouvir críticos e cinema a falar de cinema, professores de literatura a falar de literatura, por que raio é que temos que aturar advogados, empresários, médicos, poetas e outros vendedores ambulantes a falar sobre o 4-3-3?

José Neves – Historiador -  Jornal I

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