Os donos do Pingo Doce quiseram esfregar-nos na cara o nosso
egoísmo, a nossa venalidade, a tremenda distância que nos separa dos outros,
desde que de permeio esteja o nosso umbigo. Quiseram fazer-nos provar a gordura
cobarde que temos em vez de músculo; explicar-nos, muito devagar, como se
fossemos imbecis, que nada nos custa pisar as vidas dos vizinhos desde que seja
para alcançar couratos a metade do preço. E conseguiram. Anunciaram primeiro
que iam obrigar os seus trabalhadores a laborar no feriado do 1º de Maio.
Quando alguma polémica eclodiu, sujeitaram a referendo
nacional a solidariedade da manada tuga: “E se vos déssemos um desconto
jeitoso, ainda ficariam do lado dos oprimidos, ou correriam por cima deles para
agarrar vinho em saldos?” O resultado viu-se ontem pelas nossas ruas: milhares
a encher bagageiras com os despojos dos direitos dos outros.
Nas declarações de rapina, o gáudio cheirava-se à légua:
“Podemos registar o entusiasmo e a euforia dos nossos clientes, que precisam de
campanhas como esta.” Como precisamos, foi só assobiar para nos pormos de
cócoras, orifícios lubrificados pela nossa própria cupidez.
Pouco depois, quase todas as grandes superfícies comerciais
decretavam, à força de intimidação, a morte do 1º de Maio. Mais um capítulo na
história da infâmia em que vamos dando razão ao ditador que nos baptizou como
“uma nação de cobardes” – acrescentámos ontem a palavra que faltava: “Glutões.”
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