A ambição do poder,
galvanizada pela fé na doutrina neoliberal, fê-los montar a maior fraude
política desde que Portugal recuperou a democracia.
A palavra “austeridade” tem pelo menos dois sentidos no
debate público sobre a crise que vivemos. O primeiro diz respeito ao conjunto
das medidas de política orçamental que visam reduzir a despesa pública para
alcançar as metas do défice impostas pela troika. O segundo, subjacente a uma
retórica de compromisso, remete para a necessidade de uma gestão parcimoniosa
dos recursos públicos, a eliminação de desperdícios na despesa e a extinção de
serviços sem reconhecida utilidade social. A ambiguidade semântica da palavra
“austeridade” pode ser conveniente para os que se preocupam com gerir a sua
carteira de relações sociais, mas é certamente nociva para a clareza do debate
político e a formação da opinião dos cidadãos.
Em campanha eleitoral, o PSD explorou habilmente o segundo
sentido da palavra “austeridade”. Tratar-se-ia de eliminar as famosas gorduras
do Estado, com destaque para institutos públicos e fundações. Ou seja, explorou
a iliteracia económica da esmagadora maioria dos cidadãos para insinuar um
sentido para a palavra “austeridade” que o senso comum só poderia subscrever.
Os economistas daquele famoso gabinete de estudos do PSD bem sabiam que não se
tratava apenas de boa administração pública. Estavam bem conscientes de que a
rápida redução do défice público exigiria um corte nos salários, a combinar com
um aumento de impostos e taxas de todos os tipos. Sabiam tudo isto, e queriam
ir mais longe. A ambição do poder, galvanizada pela fé na doutrina neoliberal,
fê-los montar a maior fraude política desde que Portugal recuperou a
democracia. A sua austeridade era outra, a do desemprego dramático para fazer
descer os salários em nome da competitividade, uma austeridade que não podia
ser sujeita ao voto dos cidadãos. Se a desconfiança relativamente aos partidos
do rotativismo no poder já era grande, só pode ter aumentado desde as últimas
eleições, até porque a austeridade se revela inútil e os seus efeitos não
atingem os ricos.
Bem sabemos que o obscuro negócio das parcerias
público-privadas, a criminalidade financeira em alta escala com livre
circulação pelo sistema bancário, ou a irresponsabilidade orçamental do governo
da Madeira, onde também se localiza um paraíso fiscal, são apenas exemplos do
estado de desgoverno em que o país vive há muito tempo. Porém, as reformas
estruturais que deveriam pôr termo a esse estado de coisas não fazem parte da
lista do Memorando nem dos programas do rotativismo centrista por duas razões
bem evidentes: a liberdade dos movimentos de capitais especulativos e a suave
regulação do negócio financeiro constituem um dos pilares da UEM; uma parte
importante das elites político-partidárias, em Portugal e na UE, está vinculada
ao mundo da finança por interesses e ideologia. Por isso percebe-se que os
bancos europeus não tenham sido obrigados a reconhecer as perdas decorrentes do
colapso financeiro de 2008 e, nas periferias da zona euro, os bancos tenham
sido os intermediários do BCE no financiamento dos países onde a bolha do
imobiliário rebentou e/ou o sector privado acumulou um défice externo
sistemático. Os bancos puderam assim arrecadar ganhos preciosos que, em
contrapartida, aumentaram muito a sua exposição a uma dívida pública impossível
de cumprir.
Assim sendo, esta crise enlaça o centro credor e a periferia
devedora; integra num mesmo processo bancos e estados; responsabiliza elites
políticas nacionais e a tecnocracia pelo desastre neoliberal e pela degradação
das democracias. Mais, se alguém pensa que esta crise deixará intacto o quadro
político-partidário, em Portugal e noutros países da UE, de facto ainda não
percebeu o que está em causa.
Jorge
Bateira - Economista, co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas
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