Os pedidos de Passos Coelho aos portugueses – “mais
exigentes”, “menos complacentes” e “menos piegas” – só reforçam a sobranceria
com que os governantes portugueses, à imagem dos europeus, olham a crise. Uma
sobranceria que agrava o fosso entre dirigentes e dirigidos (cada vez mais
insultados) e que se manifesta de diferentes formas de capital em capital, mas
com uma característica comum: a dissociação da vida real. Na UE insistem nas
ameaças para impor mais austeridade na Grécia, achando que as notícias que
falam de um quase colapso social patrocinado por Bruxelas, Paris e Berlim são
exageradas – isto apesar do ódio a estas capitais ser já comum em Atenas.
Voltemos a Passos e ao autismo perante a vida real.
Quer portugueses “menos piegas”. Ok, mas uma dúvida: os
piegas são os estudantes que desde este mês pagam mais 58% pelo passe? Ou serão
os alunos do escalão A da acção social (menos de 209 euros por mês), que
passaram a pagar mais 5% a 21%? Ou os portugueses com menos de 700 euros por
mês que pagam 23% de IVA na electricidade? Ou os 2,7 milhões de pobres que o
Eurostat diz que temos? Fica a dúvida. “Menos complacentes.” Bem dito e a
ironia é deliciosa: temos de ser menos complacentes com os que acham que a
austeridade se faz à custa dos mais fracos e com a pobreza a que condenaram o
país. Mas tal não implica apontar o dedo a quem nos quer menos complacentes?
Temos também de ser “mais exigentes”. Certo, sobretudo com quem nos lidera e
com os que têm um CV pouco exigente, demasiado complacente e alimentado de
pieguices.
Porque na vida real ninguém enche o CV com lugares dourados
caídos do céu nem tão-pouco consegue chegar a algum lado a trabalhar apenas nas
férias de actividades políticas. Imagine que o seu CV era professor durante um
ano aos 19, depois outro emprego só aos 25 anos, e durante dois anos. Por fim
contava com nova experiência profissional só aos 36 anos. Acha que este CV ia
valer-lhe a entrada directa em dezenas de administrações? Talvez não. Porém, e
para quem nos lidera, este percurso é normal, ao alcance de todos de tão fácil
que foi, daí não existirem razões para que os portugueses tanto se queixem. É
tudo muito fácil quando se vive no País das Maravilhas...
Filipe Paiva Cardoso, Jornal I
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