A desagregação da democracia portuguesa está em marcha, e
não me parece que haja grande sobressalto cívico. Cada vez ficamos mais pobres,
e não só na razão da subsistência. Os intelectuais abandonaram a força
propulsora que os distinguiu e caracterizou como referência moral, cedendo a
uma série de intermediações que os bajula, e afasta do seu papel fundamental.
A Igreja Católica (talvez alertada por perder prosélitos) dá
tímidos sinais de que esta política conduz a uma forma cruel de desapropriação
e cria formas assustadoras de dependência. Uma carta da pastoral do Ensino ao
ministro Nuno Crato (ex-militante da extrema-esquerda, fascinado pelas sereias
do "mercado") adverte que, por este caminho, só os filhos dos ricos
poderão aceder aos estudos universitários. Entretanto, por dificuldades de toda
a ordem, seis mil alunos do Superior abandonaram as aulas.
O Governo de Passos Coelho, em dez meses, criou a desmesura
obscena de uma desigualdade a qual não passa de derivação perversa de outra,
das muitas expressões do fascismo. Não tenhamos medo das palavras. A democracia
de superfície, ou a deformação do próprio conceito, tornou-se numa banalidade
que não vejo analisada pelos historiadores e sociólogos portugueses.
A inocência corrompida da Igreja, sacudida pela necessidade
de cuidar das coisas terrenas, resultou, por tardia, no abandono de milhões dos
seus crentes. A especificidade contemporânea do mal alastrou-se com o advento
do neoliberalismo e na transformação do trabalhador num mero objecto destinado
a obter o rendimento máximo. Frequentemente, a Igreja cedeu a vez e calou a
voz, sem qualquer outra consideração que não fosse a "defesa do
sagrado", em detrimento do factor humano. Este documento agora dirigido ao
ministro Crato surge depois de protestos de professores, de pais e de
responsáveis de educação terem expresso um generalizado descontentamento.
Não se trata de paradoxos éticos do "mercado." O
que nos está a atingir, a sufocar e a empobrecer é um programa ideológico muito
bem pensado e organizado, que tem conseguido fascinar as suas próprias vítimas.
Quando o prof. Medina Carreira chama a atenção pela qualidade da manipulação a
que somos submetidos, consideram-no "catastrofista"; mas a verdade é
que ele se tornou praticamente no único a desmontar a armadilha montada contra
nós.
Não se pense que
Pedro Passos Coelho e alguns dos seus não sabem o que estão a fazer. Sabem e
fazem- -no, graças à violência simbólica que nos inculcaram de que não existe
alternativa, e à passividade doentia com que tudo admitimos. Nesta conversa
envenenada também vai António José Seguro, cujas cedências ao projecto denotam
falta de convicções, carência de estudo e ausência de antagonismo.
Parafraseando o dito de uma antiga telenovela: "Que mais nos vai
acontecer?"
BAPTISTA-BASTOS - DN
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