Os valores da sociedade portuguesa estão a mudar. Para
melhor? O futuro é sempre melhor que o passado. Mas há fases no presente em que
os valores parecem ter regressado a passados de trevas. Hoje já confundimos
direitos que conquistámos quando abolimos a escravatura com o dever de praticar
a caridade.
Os valores da sociedade portuguesa estão a mudar. Para
melhor? O futuro é sempre melhor que o passado. Mas há fases no presente em que
os valores parecem ter regressado a passados de trevas. Hoje já confundimos
direitos que conquistámos quando abolimos a escravatura com o dever de praticar
a caridade.
Na semana passada chegou ao espaço mediático a notícia sobre
as condições em que estavam a viver cerca de 50 pessoas que trabalhavam para a
Opway e a Somague na construção do centro de dados da PT na Covilhã. Começou no
"Jornal do Fundão" e chegou a uma reportagem na SIC Notícias. Aquilo,
não se queria acreditar, estava a passar-se em Portugal. Abandonados num
armazém sem água, nem luz, nem condições sanitárias. Trabalhadores, boa parte
imigrantes, a trabalharem para um empresa subcontratada por duas construtoras
de referência que estavam ao serviço de uma das mais importantes companhias
portuguesas cotadas em bolsa. Todas elas, Opway, Somague e PT têm vastos
relatórios sobre sustentatibilidade e discursos sobre a responsabilidade
social. Nenhuma se considerou realmente responsável pelas condições que estavam
a dar a quem trabalhava para elas, ainda que por via de um subempreiteiro.
Há alguns anos que nos vamos habituando à falta de ética nas
empresas. Um défice de ética que as empresas na Europa como nos Estados Unidos
foram corrigindo com relatórios em cima de relatórios sobre sustentabilidade e
responsabilidade social que são basicamente "papas e bolos para enganar
tolos" ou asas de anjos com sombra de demónio, como uma vez tão bem
retratou a revista "The Economist". As mais recentes revelações sobre
o comportamento do Barclays e, suspeita-se, de outros bancos, na fixação da
Libor, taxas de juro determinantes para o custo do crédito de empresas e
famílias, revelou mais uma vez que a ética corporativa anda pelas ruas da
amargura, para não se dizer que a indignidade tomou conta do poder nas
empresas.
Que as empresas, da banca às telecomunicações, da construção
à industria de vestuário, vivem tempos em que a ganância dita a queda de todos
os valores já todos estamos mais ou menos habituados. Maus hábitos, é verdade,
mas já não nos surpreendem.
O que não sabíamos é que cada um de nós, individualmente,
também já estava contagiado. Que cada um de nós também já tinha deixado cair
valores ganhos desde o tempo em que caiu a escravatura e, mais tarde, os
sindicatos estabeleceram fronteiras de humanização do trabalho.
A história dos trabalhadores da Covilhã, a viverem num
armazém, foi chocante por aquilo que se é capaz de fazer para ganhar uma margem
no negócio. Mas foi mais chocante ainda pela imagem que deu da sociedade
indiferente em que nos transformámos.
A primeira reacção às condições degradantes de vida daquelas
pessoas foi contactar o Ministério da Solidariedade Social como se de um caso
de caridade se tratasse. Há uns anos, não muitos, o sítio onde todos nós
buscaríamos uma resposta seria no Ministério do Trabalho, mais concretamente na
Inspecção Geral do Trabalho. E a Opway, a Somague e a própria PT teriam muito
que explicar, não se desculpando com subempreitadas ou com empregos que vão
criar.
Houve também um tempo, na escravatura e nos primeiros tempos
da revolução industrial, em que o medo fez com que tudo se aguentasse. Até ao
dia em que se perdeu o medo. O que é mais aterrador na actual crise é a
impossibilidade de qualquer sociedade europeia aguentar a degradação de valores
que as lideranças querem impor para ultrapassar os actuais problemas.
Helena Garrido – Jornal de Negócios Online
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