Nos idos anos de 1960, o regime salazarista aproveitou
bem o sucesso da selecção portuguesa de futebol no Mundial de 1966. O branco
José Augusto cruzava-se com o negro Eusébio no terreno de jogo e esta imagem de
dois jogadores de cor diferente mas de uma mesma equipa servia ao regime para
promover a ideia de que em Portugal a harmonia racial vingava. A Guerra
Colonial, essa, não passaria de propaganda estrangeira e maquinação soviética.
Nas duas últimas décadas, o regime, agora democrático,
não fez menos uso nacionalista do futebol do que a ditadura. Assim que a
selecção nacional de futebol começou a comparecer mais regularmente nos grandes
eventos internacionais, o que sucedeu a partir de 1996, governos e
primeiros-ministros procuraram sempre ficar na primeira fila da fotografia.
Emoldurados pelos jogadores, pretenderam assim subitamente adquirir a
popularidade perdida no terreno legislativo.
Falo sobre estas coisas porque se dá o caso de gostar
muito de futebol e de não ter simpatia nenhuma por qualquer tipo de
nacionalismo. Estes dois factos fazem-me a vida um pouco difícil nestes dias em
que Cavaco Silva resolveu presentear os futebolistas da selecção portuguesa de
futebol com um pacote de pastéis de Belém, depois de lhes pedir que vencessem a
selecção alemã no próximo sábado.
Neste cenário, a minha tarefa não é simples porque tenho
que lutar contra dois fogos que deflagram quase em simultâneo. Se por um lado
devemos criticar o entusiasmo nacionalista que a propósito do futebol toma
conta do espaço público e dos meandros políticos, por outro há que exercer essa
crítica sem cair numa retórica anti-futebolística que não raras vezes acolhe
uma concepção elitista da cultura, em que só há lugar para o erudito ou para o
tradicional de que erudito gosta, nunca para um fenómeno de cultura popular
urbano, de massa e globalizado.
O difícil equilibrismo que este artigo comporta é ainda
assim um risco necessário se queremos denunciar dois elementares perigos que
resultam da associação entre futebol e nacionalismo.
Em primeiro lugar, o perigo de acabarmos com o futebol
ou, pelo menos, de retirarmos qualquer prazer estético à observação de um jogo
de futebol. Que exista quem não goste de futebol mas goste de acompanhar os
jogos da selecção portuguesa de futebol porque são portugueses, tal é sintoma
de que o futebol é cada vez menos parte dos filmes futebolísticos que nos
servem. Dir-me-ão que o facciosismo não é menor – pelo contrário – a nível
clubístico, mas aqui é mais difícil distinguir o que começou primeiro, se o
gosto pelo futebol, se o gosto pelo clube.
Em segundo lugar, há o perigo de através do futebol
darmos alento aos sentimentos nacionalistas. É verdade que a tese dominante diz
que o desporto tem um efeito pacificador, que se trata de uma forma de luta civilizada,
um jeito adulto de fazer a guerra a brincar. Mas esta leitura, que não deve ser
simplesmente renegada, tem também os seus limites. A paz não é necessariamente
um tempo distinto da guerra e por vezes é apenas a antecâmara da guerra. A
idealização da harmonia racial em 1966 era bem a outra face de uma guerra sem
quartel.
Enquanto adepto de futebol e crítico de todos os
nacionalismos, resta- -me desejar que o futuro nos traga menos tempo de antena
dedicado ao futebol e melhor tempo de antena dedicado ao futebol. Que em vez
das horas e horas de reportagens sobre as bandeiras nacionais à janela,
tenhamos direito a uma só hora de bom comentário técnico.
Não peço que o futebol se torne um campo reservado aos
especialistas, como infelizmente sucede com a economia, mas se temos direito a
ouvir críticos e cinema a falar de cinema, professores de literatura a falar de
literatura, por que raio é que temos que aturar advogados, empresários,
médicos, poetas e outros vendedores ambulantes a falar sobre o 4-3-3?
José Neves
– Historiador - Jornal I
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