Por entre a bruma política e futebolística, a notícia mais
importante não abriu noticiários ou fez manchetes: neste ano lectivo, nos
exames nacionais do secundário, bateram-se todos os recordes negativos.
Em Matemática não damos uma para a caixa, em Português
ganhámos aversão à língua. Colectivamente, a força motriz que fará o nosso
futuro conseguiu distinguir-se de todas as outras desde que há exames
nacionais.
Tenho falado do assunto. A culpa não está na simplista ideia
de que os portugueses sofrem de uma espécie de evolucionismo ao contrário – é
uma análise perigosa e contraditória com outros números que nunca foram tão
bons. Uma longa conversa onde teríamos que falar do empobrecimento da
comunicação, da desagregação das famílias, da ausência de disciplina e
responsabilização individual dos alunos, da falta de qualidade de um número
substancial de professores e dos incompetentes programas. Programas que,
nomeadamente no estudo da língua portuguesa, trocam uma grande aventura por um
exercício burocrático que prefere a leitura cega da gramática à fundamental
viagem pelos livros que nos ajudaram a ser estes e não outros.
Enquanto um miúdo inglês, até ao 9.º ano, já conhece no
essencial, Shakespeare, Poe, Dickens, Wilde, Melville, Hemingway ou Virgínia
Woolf, os meus filhos e os seus, conseguiram passar pelos Lusíadas e, mesmo
assim, na maioria dos casos, sem dizer nada acerca do fio invisível que faz de
Camões um dos arquitectos da alma portuguesa. Da grande epopeia especula-se de
raspão, mas das oitavas decassílabas, subordinadas ao ritmo fixo x ou y,
mergulha-se até à náusea. Interessa-nos, como sempre nos interessou, a massa
bruta, a grande obra, aquilo que nos faz parecer sábios aos olhos de papalvos.
Nunca nos interessa, ou pelos menos raramente nos comove, a procura da
simplicidade, da grande ideia, do que nos fica no coração depois de tudo se ter
esquecido.
Importante é ficar bem na fotografia. Estar confortável nos
salões de chá onde parecemos aos outros mais qualificados na argamassa, na
linguagem codificada, na objectividade, nas convenções. Os pobres diabos que
fogem disso são vistos como líricos, utópicos ou mesmo dementes. Más companhias
e péssimas influências. Cromos poéticos, perigosos delirantes.
Exagero um pouco, infelizmente só um pouco.
O jornalista para ganhar estatuto precisa de chegar a
director ou ser comentador. Numa redacção, quando algum miúdo se destaca, é
logo hipótese para um qualquer cargo de editor, de chefe disto e daquilo.
Na medicina, os mais talentosos, são pressionados para
liderar equipas, fazer investigação e doutoramentos em universidades americanas
ou europeias, nada contra. No entanto, quando algum mostra vontade de voltar a
ver doentes, de os acompanhar e curar, há sempre quem diga ser uma loucura pois
atira para o lixo a oportunidade de uma vida.
Na política, as juventudes partidárias formam miúdos para
serem pessoas partidas e não inteiras. Antes eram cegos de ideologia, o que me
parecia mal mas, ainda assim, incomparável com esta cegueira de si próprios.
Não seguem cada um por uma estrada própria, formando opiniões, dúvidas, novas
perguntas e respostas que destroem e reformulam a cada momento – a sua estrada
está definida e, os que se destacam, seguem-na sem atropelos: fazem-se notar
com arremedos de criatividade e rebeldia controlada, sabem quem são os aliados,
licenciam-se custe o que custar e estão disponíveis para o que vier.
Nas faculdades, sobretudo nos cursos científicos, como
Biologia, os nossos melhores (doutorados nas melhores universidades do mundo)
não têm lugar como professores pois os lugares estão ocupados por outros que,
apesar de profundamente desactualizados, formam alunos que, no final da
licenciatura, estão atrasados em relação aos colegas ingleses, franceses,
italianos, espanhóis ou italianos. Escolho a Biologia por ser um exemplo
flagrante onde se evoluiu mais nos últimos vinte anos do que em toda a sua
história.
Licenciar-se, custe o que custar. Parece contraditório com o
que disse antes, mas apenas aparentemente. Portugal tem a mais alta percentagem
de licenciados e doutorados a ocupar cargos políticos, é um facto. Não são
permitidas excepções. A licenciatura transformou-se não numa opção para melhor
mergulhar no conhecimento, mas numa opção de sobrevivência. O que ouvimos,
mesmo entre os pais, não é da necessidade de se conhecer mais, de se saber
mais, de se atingir a sabedoria. O que ouvimos é o mais cortante, e menos
poético, «o meu filho precisa do canudo».
Como escrevi numa mensagem para amigos «ser chamado de
doutor é hoje mais uma forma de igualização do que de distinção. Nas empresas,
escolas, banca, ONG’s, política ou televisão, a maioria das pessoas é o título
e só depois o nome. Doutor isto, engenheiro aquilo e uma consequência: o que
era status transformou-se num estigma que confunde respeitáveis cidadãos com
veneráveis imbecis. Estou certo que, num futuro não muito distante, importantes
serão os que forem reconhecidos pelo seu nome e essência».
Oxalá.
Luís Osório - Sol
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